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quarta-feira, 17 de maio de 2017

Responsabilidade afetiva nas relações poliamorosas

Como é sabido, o Poliamor é um modelo de relacionamento não monogâmico que, apesar de abarcar inúmeros arranjos possíveis de relação (fechado X aberto; com prioridade X sem prioridade; em grupo X paralelo, etc.), possui três características básicas comuns: não exclusividade sexual e/ou afetiva, consensualidade e igualdade entre todas as partes. Contudo, muitos parecem ignorar as duas últimas características, limitando-se a viver relacionamentos sem exclusividade, porém sem RESPONSABILIDADE com os demais. Nesse contexto, precisamos destacar que Poliamor NÃO deve ser apropriado como uma maneira de legitimar a irresponsabilidade com o/a(s) parceiro/a(s), como uma forma de oficializar a “traição”, de justificar imaturidade emocional e a falta de comprometimento, companheirismo e cuidado com o outro. Pra começo de conversa, se alguém se propõe a viver uma RELAÇÃO (independente do tipo que for), precisa entender que esta é constituída de pelo menos mais uma outra pessoa, e essa pessoa ou pessoas possuem demandas, desejos, traumas e condições específicas de gênero, orientação sexual, raça e classe social que vão influenciar em como ela vai lidar com os desafios de se viver uma relação sem exclusividade em meio a uma sociedade mono e heteronormativa, machista, racista, capitalista, etc. Tais especificidades precisam ser levadas em conta na dinâmica do relacionamento e é aqui que entra a questão da tão polêmica RESPONSABILIDADE AFETIVA.

Dentro do meio Não-Monogâmico, tem sido muito comum ouvir críticas sobre ciúmes e insegurança como se tais sentimentos fossem atestado de pessoa “menos livre”. Há um discurso corrente de liberdade liberal onde cada um é unicamente responsável por si mesmo e “livre” para fazer o que desejar. Nesse sentido, se alguém se incomoda com certas atitudes e comportamento de seu/sua (s) parceiro/a(s), a consequência é a crítica e o julgamento, a taxação de pouco “desconstruído/a” e, muito comum quando se tratam de mulheres, de “louca ciumenta”. Dessa forma, a pessoa em questão não apenas sofre por sentir todo o incômodo advindo de uma socialização que lhe ensinou que esses sentimentos eram “naturais” e inerentes ao amor, como sofre por se ver perdida e desamparada para lidar com toda a angústia de querer viver o poliamor mas não se sentir “evoluída” o suficiente para concretizar tal querer. É nesse momento que muitos (em especial mulheres por questões óbvias de machismo) desistem do projeto de construir relações polis e, com sentimento de fracasso, retornam à monogamia que, em geral, também não se apresenta como uma opção satisfatória e potencializadora (mas é a única que lhes cabe por sua pouca “evolução” emocional).

E qual seria o outro caminho possível nesses casos? Defendemos a responsabilidade afetiva nas relações poliamorosas como uma maneira saudável de lidar com a questão. Sendo dessa forma, em uma situação de ciúmes, desconforto ou insegurança, o diálogo entre as partes envolvidas é a solução-chave. À partir do diálogo franco e respeitoso, é possível estabelecer acordos que dêem conta dos problemas acima levantados. A função dos acordos é justamente facilitar o processo de desconstrução dos sentimentos introjetados pela monormatividade e auxiliar na construção da autonomia individual de todas as partes do relacionamento. Ou seja, o acordo é a ponte entre o real e o ideal (lembrando aqui que o ideal é sempre o modelo que parece melhor para cada indivíduo), por isso deve ser flexível e mutável, e com o objetivo claro de não servir como bengala eterna de uma dependência emocional que aprisiona e sufoca o/a(s) parceiro/a(s) em suas demandas nunca resolvidas.

As pessoas, no entanto, precisam entender que não é porque o relacionamento não é monogâmico que não é relação, que não há um vínculo estável e profundo entre duas ou mais pessoas e que, portanto, “fazer o que quiser” sem se preocuparem como os seus atos irão afetar o(s)/a(s) parceiro/a(s) é agir como SOLTEIRO/A. Dessa forma, se o que se almeja é a falta de compromisso, de responsabilidade e de cuidado com o outro, o que se quer é a solteirice (e não tem nada de errado nisso!), que então esse sujeito vá viver livre e solto, mas sem ludibriar ou usar ninguém.

Outro ponto importante a destacar é a confusão recorrente entre autonomia e individualismo/egoísmo. Ser autônomo é ser capaz de gerir o máximo possível a própria vida de modo que as relações afetivas venham para potencializar (e não dar sentido!) a existência dos indivíduos envolvidos, é ser capaz de alcançar felicidade estando ou não em relacionamentos afetivos/sexuais, é ser capaz de lidar com a dor do término sem buscar logo outra pessoa para “tapar o buraco” da carência, é ter vida prazerosa e produtiva para além do/da(s) parceiro/a(s), ou seja, é o contrário da DEPENDÊNCIA AFETIVA. Contudo, NÃO é negligência com os sentimentos do outro, não é falta de empatia com as necessidades alheias, de comprometimento com a relação; tampouco significa que, para ser autônomos, precisamos lidar sozinhos com todos os problemas, frustrações, anseios e receios. Assim, autonomia não deve ser confundida com desamparo emocional em nenhum sentido, para nenhuma das partes.

Há um termo utilizado no anarquismo moderno que podemos aplicar às relações poliamorosas que é o da AUTONOMIA LIBERTÁRIA, esse conceito de autonomia implica que o caminho para se conquistar a autonomia individual deva ser percorrido de forma coletiva. Portanto, a dedicação e o empenho para se alcançar, seja uma sociedade sem hierarquia e opressão, seja um relacionamento sem dependência afetiva, deve ser colaborativo, em conjunto.

Já o egoísmo se manifesta nos indivíduos que em geral só se importam com suas próprias vontades, necessidades e limites, que não buscam na relação uma oportunidade de troca e construção potencializadora, mas sim uma maneira de satisfazer suas necessidades individuais, seu egocentrismo e/ou carência. Para os egoístas, as pessoas apenas suprem “buracos” - alguém para sexo estável, alguém para cumprir a função social de esposa/marido, mãe/pai de seus filhos, para reclamar da vida e fazer companhia nos dias frios - não importa que “buraco” seja esse, mas é sempre apenas suprir uma (ou mais) falta, nunca para somar e compartilhar.

Desse modo, defendo que o ideal das relações não-monogâmicas (e monogâmicas, por que não?) seja o da autonomia libertária, onde todos os indivíduos tenham plena consciência de que o amadurecimento e a consequente independência emocional é menos traumática e mais eficiente se realizada em parceria(s). Essa, em minha opinião, é a única forma em que todos saem ganhando e, com certeza, a forma mais saudável de unir anseios individuais e segurança emocional, liberdade e estabilidade afetiva.