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terça-feira, 20 de maio de 2014

O dogma da "normalidade"


O que vem a ser um dogma?

Muitos utilizam essa palavra sem o pleno conhecimento de seu significado. Bem, segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, temos como definição: " s.m. Teologia. Aspecto, item particular, mais importante de uma doutrina religiosa que se apresenta como algo indubitável ou inquestionável. 
P.ext. Qualquer discurso ou ideologia de teor inquestionável. 
P.ext. Causa delimitada; opinião estabelecida; preceito. 
(Etm. do grego: dógma.atos, pelo latim: dogma.atis)". 

Já a questão da normalidade é mais complexa e vamos nos utilizar da conceituação de alguns autores  que se debruçaram sobre o tema:

"Segundo Davis (apud Silva, 1997, p. 8), a noção de norma e normalidade é uma invenção relativamente recente. Embora, como diz Davis, a tendência a fazer comparações seja muito antiga, a gênese da idéia de norma e normalidade localiza-se nos séculos XVIII e XIX, em conexão com o processo de industrialização e de transformação capitalista. Desenvolveu-se aí, em conexão com noções sobre nacionalidade, raça, gênero, criminalidade e orientação sexual, um conjunto de práticas e discursos centrados ao redor da noção de norma e de normalidade. [...] Nesse sentido, a norma se estabelece a partir do controle, da regulação da população. O interesse em uma população saudável, perfeita, normal, incide em uma questão mercantilista de produção, ou seja, sujeitos governados e adestrados para a produção e o consumo."(http://www.pedagobrasil.com.br/educacaoespecial/inclusaoexclusao.htm)


"Aristóteles afirmava que o homem é um animal político (“Homo zoon politikon”), o homem é naturalmente gregário. Diferentes grupos criam hábitos diversos, dependendo tanto do ambiente quanto do fator histórico ou da sua concepção de rerum natura (do latim “a natureza das coisas"). Se desprender-se dos hábitos do seu grupo constituísse anormalidade, estaríamos determinando uma espécie de súplica por estagnação. As normas seriam invariáveis, impossíveis de qualquer mobilidade ou modificação. Nosso modo de viver, ao contrário, é um constante reavaliar do que temos feito e do que podemos fazer, de forma que as normas, leis, valores morais e padrões estéticos modificam-se com certa frequência no transcorrer do tempo. Nossa própria concepção de normal é variável." (http://tenhaumatoalha.wordpress.com/2011/12/12/o-ideal-normalizador-e-as-muitas-visoes-sobre-a-normalidade/)

Dessa forma, a partir dos conceitos esclarecidos acima, podemos entender o dogma da normalidade seria um discurso inquestionável sobre algo que está em constante mudança e contradição e, que não é, de forma alguma natural e sim, uma invenção, adaptação que cada cultura e época constrói para adequar os indivíduos aos interesses dos setores dominantes.

E nesse sentido que estamos nos propondo a refletir sobre o conceito do dogma da normalidade em nossa sociedade. Primeiro é interessante questionar quem estabeleceu no ocidente contemporâneo o que é e o que não é  NORMAL. Quais os interesses em declarar que certos indivíduos podem ser considerados sãos e quais devem ser considerados insanos/loucos/desajustados?

Como já citado por Davis o processo de industrialização e a transformação (e consolidação) capitalista  são determinantes para tal classificação de normalidade. É normal o que é útil à engrenagem capitalista. Ou seja, as pessoas precisam ter pensamentos, valores e comportamentos que coincidam com os interesses da burguesia. A ideologia burguesa, incluindo a grande mídia,  é  grande responsável por veicular esses pensamentos/valores/comportamentos entendidos pelo senso comum como "normais". Assim temos alguns exemplos bastante óbvios do que estamos tratando: é normal menina gostar de rosa e brincar de boneca (o contrário não); é normal que os adolescentes do sexo masculino possam ficar com várias meninas (o contrário não); é normal que todos se casem com UMA pessoa do sexo oposto (o contrário não); que tenham filhos herdeiros; que formem famílias tradicionais e nucleares (o contrário não); que as classes trabalhadores sejam exploradas para gerar lucro às classes dominantes - trabalhando 8 horas por dia ou mais e ganhando em média algo próximo de um salário mínimo; é normal que as profissões e salários mais valorizados sejam aqueles condizentes com o aumento da economia capitalista. Ou seja, as pessoas precisam seguir uma trajetória de vida que se encaixe com os interesses burgueses.

Mas o que acontece quando um indivíduo foge a esses padrões? estigmatização, patologização, discriminação, perseguição, exclusão, punição, criminalização.

E é dessa forma que em nossa sociedade é bem mais aceita uma família tradicional desestabilizada do que uma família baseada em modelos alternativos; mais aceito um casal hetero sem condições psicológicas e financeiras para criar uma criança do que um casal homossexual com as melhores condições possíveis; mais aceito um homem que traia sua esposa do que aceite ter com ela uma relação aberta; mais aceito um casamento monogâmico por interesses financeiros ou fundamentados em condições patológicas de dependência, ciúme, insegurança, possessividade e machismo do que um arranjo poliamoroso realizador e potencializador para todos os envolvidos.


Sendo assim, proponho que repensemos os conceitos de normalidade: “O ‘anormal’ de uma sociedade pode ser apenas alguém distanciado de sua cultura de origem, ou uma voz dissidente do poder instituído. O que em outras épocas era considerado loucura, hoje pode ser padrão de normalidade. O que era considerado um absurdo nos padrões da ‘norma’, poderia ser uma grande descoberta, algo capaz de revolucionar a sociedade.” (AIUB, 2011.)

Sharlenn 

2 comentários:

  1. Nossa linda! Muito elucidativo! Você consegue dizer com profundidade e clareza ao mesmo tempo coisas que pensamos mas não conseguimos expressar! Parabéns mais uma vez! <3

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  2. Obrigada pelo apoio e pelo carinho! Fico satisfeita que goste dos meus textos! :)

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